terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sessão de descarrego

Assuntos polêmicos sempre foram os meus preferidos. Mas para variar, não vou desta vez descer a ripa no Papa ou na Bíblia, nem no Estado ou no capitalismo.
Como acho que estou precisando de algo novo, dedicarei algumas linhas a fazer observações sobre o espiritismo.
Há tempos atrás já fiz uma ressalva sobre esse “mix religioso” que acontece no Brasil. Catolicismo e Espiritismo se enamoram por aqui como se fossem irmãos - embora, na verdade, as doutrinas se excluam. (Leia aqui: Dando pitaco no assunto do momento).
Como também não quero mais fazer simples comparações entre o improvável e o surreal, introdutoriamente, para evitar repulsas frenéticas, farei uma pontuação sobre essas discussões que abordam a fé de forma, digamos, mais dura e realista. Então vamos lá, sem mais cerimônias...
Sei que para a maioria das pessoas “fé não se discute”, ou como diria uma amiga minha, “contra a fé não há argumentos”. Digo a estes que, se assim for, não podemos questionar os homens-bombas, nem os radicais islâmicos, nem rituais satânicos ou as circuncisões femininas feitas para que as mulheres não sintam prazer. O mesmo vale para açoites, apedrejamentos de adúlteros em praça pública e até mesmo a exploração da fé feita por algumas igrejas, nas quais os fiéis são impelidos a doar boas quantias em dinheiro, sob pena de irem para o inferno. Tudo isso é fruto da fé, logo, para muitos, seriam fatos indiscutíveis. Mas não para mim. Parto do princípio de que tudo deve ser permitido e lícito, desde que não invada a privacidade e nem traga prejuízos a outrem, sejam estes prejuízos materiais ou psicológicos. É sob este prima que se funda a liberdade e a moral moderna e é nele que me apoio. Neste sentido, digo que não é legítimo dar pedradas nos outros, nem mutilar, nem extorquir dinheiro alheio, nem amarrar bombas ao corpo e se atirar na multidão. Receio que ninguém que é vítima das doutrinas religiosas ignorantes queira isso. Não imagino que uma jovem adolescente que escape de uma circuncisão, depois de algum tempo se arrependa e vá ao cirurgião pedir que lhe arranque o clitóris. A dignidade humana existe concomitantemente com o sofrimento humano. Eles fazem parte de nós independentemente da fé, raça, crença ou situação econômica.
Concluindo, digo que, se podemos discutir e criticar partidos políticos, times de futebol, certos comportamentos, filmes e músicas, podemos também discutir e criticar a fé. Não há porque se calar diante dela. A fé é passível de críticas como tudo nesse mundo, principalmente quando ela traz resultados deploráveis, sofríveis ou negativos à raça humana como um todo.
Não diria que o espiritismo se encaixa em tudo explicitado acima, mas afirmo que, se ele defende idéias racistas, injustas e que estagnam as pessoas, tenho o direito de criticá-lo a partir do meu ponto de vista.
Inicio com a pior conclusão trazida pelo fenômeno espírita da reencarnação, que é a de que Deus é racista por privilegiar evidentemente certo biótipo humano. Para os espíritas, a reencarnação segue um critério similar a uma “promoção”. É simples: se você vive cometendo ações ruins, você sofrerá na próxima vida. Do contrário, se foi uma pessoa boa, na próxima vida desfrutará da felicidade e dos prazeres mundanos. Sendo assim, não há como concluir que os povos da Somália, Angola ou da Favela da Rocinha estão pagando os erros de vidas passadas. Por outro lado, obviamente, Suecos e Noruegueses foram “promovidos”. Chega a ser inacreditável, mas ouvi da boca de uma mulher espírita que “a raça negra é uma raça menos evoluída” e que “boa parte deles são reencarnações os soldados romanos”. Daí a explicação para tamanho sofrimento no Haiti, na África e nas favelas. Pessoa boa nasce branquinha, pessoa má nasce negrinha e no gueto!
Com essa lógica da “promoção”, o espírita dá explicações a tudo. Todas as desgraças estão relacionadas a suas atitudes na vida passada. Isso acontece mesmo que você não saiba nada do que fez na tal vida passada! Muito justo, não acham? Ou seja, você paga por aquilo que desconhece ter feito. É como se te jogassem na cadeia e não lhe dissessem por qual crime (acho impressionante como tanta gente, até mesmo católicos, absorvem essa explicação bizarra para o sofrimento humano).
Quer pior? Isso é imutável, pois está nos planos divinos! Você está sofrendo e nasceu para aquilo. É seu destino, ou se preferir, seu "karma"! Sua alma já entrou no corpo do bebê que sua mãe carregava (e que viria a ser você) programado para viver tudo isso - tudo para que você evolua, para o seu bem!
Nesta perspectiva, o tão aclamado “livre-arbítrio” dos católicos virou pó, pois não há como fugir dos propósitos terrenos preparados pelo Deus do espiritismo. É sua missão.
Alguns espertinhos poderão pensar: “ora, mas existem noruegueses sofrendo e africanos felizes”. A estes “espertinhos”, pergunto: “Quantos? Quantos noruegueses estão sofrendo com a miséria, com a doença, a fome, a guerra e com a insalubridade e quantos africanos possuem o conforto de uma moradia decente, um bom hospital, transporte, laser, uma comida farta e saudável, bem como uma boa educação, enfim, uma vida digna e prazerosa? Qual é a expectativa de vida na Somália e na Noruega, na Suíça ou na Dinamarca?”.
Não há como ser ludibriado por argumentos falaciosos como os da doutrina espírita se uma reflexão mais profunda for feita.
Para o espírita, o mendigo na calçada é uma pobre alma que não evoluiu e que agora está pagando pelos erros da vida passada. Ele não é um problema social. Se aquela alma não estivesse ali, estaria em outro lugar desde que estivesse sofrendo. Foi tudo premeditado por Deus. Este pensamento traz várias conseqüências no modo de ver a vida e como conduzi-la. Cria-se uma visão deturpada do ser humano, do sofrimento alheio e da sociedade.
Assim sendo, a caridade espírita não é uma benevolência, mas sim uma forma de ser “promovido”. Fazer boas ações na religião é subir degraus. Não há nada de bondade nisso. Onde há recompensa não há caridade. Há sim, uma troca.
É nisso que o espiritismo acredita. E é isso que eu, como ser humano, não posso deixar passar ileso.