quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Tropa de Elite 2: a moral às avessas

Primeiramente, gostaria de dizer que considero "Tropa de Elite 2" um dos melhores filmes que o cinema nacional já criou. A trama é muito bem estruturada e traz ótimas interpretações. Wagner Moura, como sempre, está mais convincente do que nunca. Tão convincente que consegue facilmente trazer à tona, um sentimento, ou melhor, uma noção antiga que, apesar de abrandada pelo tempo, sempre renasce com furor nas épocas em que a violência aumenta. Em frente à tela não é diferente quando somos expostos às cenas como as do longametragem. Nos convencemos de que o correto é que o Estado nos vingue e de que violência se combate com violência.
Para agravar o quadro da moral deturpada que aflorou com a mensagem exposta por José Padilha no cinema, nestes últimos dias, o país está acompanhando na TV (e na pele) a guerra ao narcotráfico que se instaurou no RJ. Isto faz com que os telespectadores projetem na realidade as cenas do filme, fazendo uma analogia equivocada e consagrando os soldados do BOPE como heróis nacionais.
No cinema, em cenas como a que Nascimento espanca o político, a galera vibra como se estivesse no estádio de futebol e seu time acabado de fazer um gol. Logo no início do filme, na cena em que o traficante interpretado por Seu Jorge leva um tiro e morre na rebelião, é impossível não escutar um "bem feito" ao lado.
Um detalhe vale ser destacado: em Tropa de Elite 2, conforme o próprio nome, "o inimigo agora é outro", enquanto que no RJ, a ação do BOPE é a ação deste "outro" (o sistema). Um sistema que age, desastrosamente, matando inocentes que, no final, são tratados como "efeito colateral" do combate.
Juntando tudo:  o clima instaurado pelo filme (que foi assistido por milhões de brasileiros), as imagens reais do BOPE em ação (com edições cinematográficas feitas pela imprensa) e ainda, o jargão do Capitão Nascimento "bandido bom é bandido morto", ninguém tem mais dúvidas de que matar o bandido é a coisa mais natural e mais correta a se fazer (uma analogia com a pena de morte seria  razoável). Nascimeno é o nosso "Robin Hood da segurança pública" que justifica o bem praticando o mal. Tortura, gravações e provas ilícitas, fazer justiça com as próprias mãos, vale tudo em prol da segurança. "Os fins justificam os meios".
Nessas horas, em pleno calor das imagens (seja da ficção ou da realidade), Direitos Humanos é papo de "esquerdinha de merda" e coisa pra "Che Guevara". Revestimo-nos então, com a famosa Lei de Talião: "olho por olho, dente por dente", tão arcaica quanto moderna, porém, desta vez na pior de suas vestes.
Antes de remediar, ou seja, de combater o tráfico, deveríamos nos perguntar: por que é que aquelas pessoas na favela traficam? Por que elas optam pelo crime? Ou até melhor... Porque é que existem tantas favelas no Brasil? Para dar esta resposta não é preciso ser nenhum gênio das ciências sociais, pois qualquer brasileiro sabe o quanto é incompetente o nosso Estado. Todos sabemos que em matéria de distribuição de renda e de reforma agrária, nosso governo caminhou quase nada. Qualquer um sabe da desigualdade que há na sociedade e o quão distante ela está de ser reduzida a um nível tolerável. Tudo culpa do Estado? Ora, de quem mais poderia ser senão do administrador dos bens públicos? Não é o Estado quem cobra impostos no intuito de promover o bem comum?
Por estes motivos, não se pode tratar o combate na favela como um simples "toma-lá-dá-cá". Matar os bandindos é eliminar (remediar) um problema que o próprio Estado criou. Um problema que ele não consegue resolver e que perdeu o controle há tempos. Assim sendo, aqueles que nasceram no meio da insalubridade da favela, em meio à falta de oportunidades e do desemparo estatal, se vêem punidos pela segunda vez pelo mesmo carrasco.
Não se trata de defender a impunidade ou de ser passivo frente a tudo que está acontecendo. Estou dizendo que este sentimento alimentado pela mídia e pelo filme é retrógrado e incompatível com um Estado Democrático de Direito. A polícia não é e nem deve ser instrumento de vingança da sociedade - até porque os combatidos são frutos da contradição desta mesma sociedade, bem como parte dela.
Obviamente, na favela não há só traficantes. Pelo contrário. O que se tem notícia é de que a grande maioria é gente de bem. Na minha (radical) opinião, gente de bem na favela é aquela que se conformou com a miséria, abriu mão da ambição e procura não se iludir com a remota possibilidade de viver uma vida decente de classe média. Em contrapartida, aqueles que entraram para o tráfico são os "rebeldes", ou seja, aqueles que não querem se sujeitar ao salário de R$ 510,00 por mês para ficar atrás de um balcão ou "bater caixa" na feira pelo resto da vida (caso sobreviva).
Talvez esta seja uma visão radical para alguns que lerem este texto. O que não me espanta em nada, pois sei que para os muitos que venceram e estão fora da "margem de corte", a ideia é a de que o outro só não venceu porque não quis, porque não se esforçou. Nas discussões sobre este assunto sempre há alguém pra contar a historinha do cara que saiu da favela e do meio da miséria, que conseguiu se virar e mudar de situação (Silvio Santos é o exemplo predileto). Todo mundo conhece um caso desse, não é mesmo? Concordo, também conheço! Só não concordo com invocar a exceção para desqualificar a regra. Este é um péssimo recurso discursivo frequentemente utilizado por aqueles que, em um debate, querem inverter a lógica numa tentativa de transformar o falso em verdadeiro. Ou pior, como neste caso específico, transformar pessoas que na verdade são mais vítimas do que todos nós em exclusivos culpados pela violência que está exposta nas imagens, sejam elas reais ou fictícias.

3 comentários:

  1. “Se morrer nasce outro!”

    Acho correta sua análise. Não há nesse tipo de interversão nenhum interesse na diminuição real dos níveis de violência, marginalidade e desigualdade. É a política do “amanha eu resolvo” em que o Estado (sob nossos aplausos) joga a poeira para debaixo do tapete para mostrar a casa limpa durante a Copa.
    Desacredito totalmente nesse tipo de ação! Não consigo ver coincidência na estreia Estreia de Tropa de Elite 2 + interversão nas favelas do Rio + Vésperas de Copa do Mundo. Para mim isso não passa de justificativas para um projeto sanitarista que as elites brasileiras querem implementar.
    Fica a lição de um menino de nove anos, viciado, armado, drogado, do documentário, Falcão: Meninos do trafico: quando perguntado se não temia a morte, ele respondeu: “Se morrer nasce outro que nem eu. Ou melhor. Ou pior!”.
    Enquanto isso, continuamos no Brasil de Brasis, onde o drama de uns é deleite de outros, aplaudamos nossa tragédia, brindemos, bebamos, mas saibamos: um dia a festa a acaba! E na nossa fabrica de pessoas sem perspectivas, quase sempre fadadas ao crime, nasce outro, e outro, e outro...

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  2. A lei serve o proposito de proteger os interesses capitalistas de grupos hegemonicos. O criminoso com certeza e produto do sistema, da falta de oportunidade, da falta de educacao, etc. Mas nao so isso, um dos temas abordados pela primeira versao do filme e muito importante: o consumo de drogas pelas classes ricas (embora isso seja apenas mais um fator) tem grande influencia nessa rede corrupta de construcao de mariginais. O sistema penal e instalado com a missao de falhar. O governo nao e o "unico" responsavel porque em uma democracia tao bem estabelecida atravez do voto popular como o Brasil, o politico e infelizmente um reflexo da populacao. O eleitor tem o poder de colocar, de tirar, etc, mas nao o faz. Os que se dizem bons demais para se envolver em politica, se omitem, permitindo que o pais siga eternamente nas maos de elites corruptas. Ate o fenomeno "Lula" e produto disso. Chegou ao poder com a bandeira da representacao popular, e no entanto, o pais esta nas maos de raposas velhas da extrema direita, como Sarney. A Marina conquistou o coracao de muitos com a bandeira de um "novo" partido -- partido fundado pelo "filho" do Sarney. Tudo continua igual, so que um PIB mais alto devido ao crescimento inevitavel que se deu apos a estabilizacao do plano real, que erradicou a hiperinflacao. Um pais com miseria, violencia, e estratificacao social nao e um pais de todos. O Brasil ainda e um pais de elites corruptas, so que dessa vez, os pobres estao ganhando "um pouquinho mais," mas os ricos estao faturando muito mais, entao todo mundo fica contente. O capitao Nascimento de fato tem um codigo moral bem distorcido, o problema da nacao e que ele pelo menos apresenta certa moral.

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  3. Olá Cláudia,

    Bom... Vc abordou vários pontos revelantes e alguns confusos também. Vamos lá...
    Temos que admitir que, se "a lei serve o propósito de proteger os interesses capitalistas de grupos hegemônicos", não podemos dizer logo abaixo que "há uma democracia bem estabelecida através do voto popular". O erro está aí. As pessoas acham que porque podem votar, elas estão vivendo uma democracia. Democracia é algo muito mais amplo.
    Com o voto, o máximo que podemos fazer é exercer um limitado controle sobre quem entra e quem sai do governo para nos representar. Porém, o Tiririca está aí para provar que muita gente não está preocupada com isso.
    Cada governo reflete a mentalidade de seus eleitores (óbvio!). Logo, devemos abandonar este discurso de que a culpa é da política. Não é!
    Há no blog um outro texto em que trato disso. Sugiro a leitura: http://catarsenoturna.blogspot.com/2010/10/pior-do-que-ta-nao-fica.html

    Até mais.

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